domingo, 24 de outubro de 2010

A inércia da alma




Dia clarinho
Vento fininho
Suspiro
E lá está.
Chuva chovendo
Frio tremendo
Esconderijo
E lá está.
Tempo,
Temporal,
Temporada.
Dia,
Noite,
Madrugada.
Tudo.
Continua lá.
Um talher fora do lugar
Uma planta seca
Um copo sujo
Uma janela aberta
Uma cortina velha
Um pobre olhar
Um horizonte
Que com seus trópicos
E meridianos
Lá está.
Vestindo trapos
Sem se pentear.
Está a coisa
Que se assentou
Num resto de sofá.
A coisa que não sai
Que não busca outro lugar.
Que não fala,
Que resmunga
Que vive a lamentar.
Um fungo humano
A escarrar
Suas dores
Sua inércia
Sem sorte,
Sem direção.
Lá está a coisa
Assentada
Sob o passado,
O presente
E o futuro
Perdida no espaço
E no tempo
De angústia e solidão.



Natália Abreu



Mundo de meu Deus



Êita mundo de meu Deus!
Todo mundo em busca de algo
Traçando caminhos
Com destino a...
Em busca do quê?
Alguém sabe dizer?
Competição,
Poder...
Em nome de uma felicidade
Sem razão de ser
Mundo de meu Deus,
De psêudos ateus
E equivocados devotos
Que dirigem seus olhares ao céu
Mas não os dirigem para o lado
Todo irmão é uma ovelha negra
Embrionário de certo passado
Nessa grande família em crise
Não é a ausência do Pátrio!
Estão todos perdidos
Nesse mundo de meu Deus,
Mundo de homens estrábicos.


Natália Abreu

Criança, criação





Eu vi uma criança
Admirada com a lua
Queria pegá-la
Com a palma da mão
Eu vi uma criança
Chorosa
Queria colo
E não entendia que “não”
Olhos vivos, arregalados
Olham em qualquer direção
Criança sapeca,
Esperta, moleca
De pés descalços no chão
O colo do adulto, astuto,
É o apoio
Para alcançar a lua com a mão
Desejo de criança é assim,
Que nem bola de sabão
Assopra, faz borbolhas,
Vão flutuar na imaginação
Eu vi essa criança
Não tem cor, nem estatura
Nem cheiro, nem dimensão
Vi cativa,
Lúgubre solidão
Criança perdida
Num corpo qualquer
Menino, menina.
Homem, mulher
Numa bolha de sabão
Alcanço o céu,
Toco a lua com a mão
Vi dentro de mim a criança
Que ansiava por criação.



Natália Abreu

Pijama




Hoje não vou tirar o pijama
Ele será para mim segunda pele, rosada
Dormindo comigo, sonha meu sonho
Aconchega-me na madrugada

Leva em si o meu cheiro
Suor, se pesadelo fosse
Se sonho contigo à noite
Perfume que exala das flores

Chama-me para deitar, o pijama
Despede-se da lua, ninando ao luar
Envolve-me com um abraço de leve
Meu corpo se põe a afagar

Extensão da minha intimidade
Hoje a quero latente, não vou me trocar
Se o meu pijama vida tivesse,
Seria eu a pijamear.


Natália Abreu

Soneto do amor perdido





Ninguém te viu entrar
Campo minado de solidão
Veio sem pedir licença
A este desatento coração

Quando enfim noto sua presença
Lá estás adormecido
Por um momento me recordo
De ter, há tempo, te esquecido

Teu sono parece infindo
Pois me buscou intensamente
Ao encontro te sinto frio, talvez agora, descontente

Tentei despertar-te, embora, tardiamente
Vais agora buscar abrigo
Em coração de outra gente



Natália Abreu

sábado, 9 de outubro de 2010

Sobre a confiança

Acendam as luzes,
Suplico, acendam!
Vago no escuro
Tudo é confuso
Sem rumo...
Acendam!
Mas queres que
Eu confie:
Serás o meu guia
Pela vida afora
Insisto:
Acendam as luzes,
Acato:
As deixem apagadas?
Confiar é dizer que sim
Sem saber-se da estrada.


Natália Abreu

Sobre o corpo e a alma




Você me veio
Em pensamento
O corpo respondeu
Em seguida

Coração palpitante
Maçãs rosadas
Brilho nos olhos
Frio da barriga


Natália Abreu                      

sábado, 2 de outubro de 2010

Eu, sujeito




Daqui de dentro
Vejo o que não é dito,
Ouço o sofrimento
Sinto corações aflitos


Daqui de dentro
O sol não brilha tanto
A chuva descompensada
Se confunde com o meu pranto


Daqui de dentro
O medo, o vazio, a solidão
A indiferença, o desafeto
Absurda contradição


Dia após dia
Perdemos mais a identidade
"Mãos para trás, cabeça baixa"
Será que perdemos a dignidade?


O mundão lá fora é o mesmo:
Olhos reprováveis da sociedade
Faltam escolhas objetivas
Para lutar pela liberdade


Daqui de fora
Vejo o que não é dito
Mas é expresso no olhar,
No riso e no grito


Daqui de fora
O sol não brilha tanto
Minha cabeça permanece baixa
Por tamanho desencanto


Daqui de fora sou mais um
Não sou mais eu. Não tenho nome
Não tenho credo. Não tenho laços,
Mas sinto frio e sinto fome


Para o meu alento não há sustento
Sou só um homem que vaga de dentro para fora
Que por vezes não vê a hora
De ser, de verdade, sujeito.



Natália Abreu,
sobre sujeitos dentro e fora das prisões 

Bernadete




Saindo do beco
Lá vem Bernadete
Robusta, de batom arregalado,
Blush na face, mascando chiclete.

São seis da manhã
Já está tudo preparado:
Menino na creche,
Arroz refogado.

Lá vai Bernadete.
Ônibus lotado.
O senhor vai em pé
E o rapaz, assentado.

- Seu moço! Dá licença!
Fico na próxima parada!
Espreme daqui, aperta dali,
Suspende a sacolada.

Lá vai Bernadete
Pra mais uma jornada.
Zona Sul, gente chique!
Meio que desengonçada.

A patroa deixa dito:
- Quero tudo bem lavado!
Roupa estendida, casa limpa,
Filé bem passado!

De noitinha o patrão:
- Bernadete! Minha empregada!
Está aqui sua documentação,
Sua carteira foi assinada.

São sete da noite
Lá vai Bernadete, para casa mal acabada.
No ônibus lotado, cheirando a labuta,
Mais uma assalariada.


Natália Abreu
(Poema da série “Meu Brasil, brasileiro”)

Juvenal



Mãos calejadas,
Calcanhares rachados,
Olhos cansados,
É o senhor Juvenal
Que aos quarenta e tantos
Carrega lata de areia na cabeça,
Faça chuva ou faça sol.
Tem com a esposa sete filhos
Que faz questão de ver estudar
Este ano não teve vaga
Pro caçula se matricular
Mas Juvenal é homem de fé
Pegou com Nossa Senhora
De um jeito!
Que o negócio vai dar pé
Enquanto isso trabalha
E reza e trabalha.
E de um tudo faz nessa vida
Para nada à família faltar
Mês de chuva,
Pouco serviço
O negócio vai apertar
Água, luz, padaria,
Contas e contas pra pagar
Não teve serviço o suficiente,
O dinheiro não vai dar
E lá vai seu Juvenal
Segue pra porta do bar
Desce uma, desce duas...
“Tem as conta pra pagar”
Desce três, desce quatro...
“Tem a família pra sustentar”
Chega em casa embriagado
Lata vazia, tudo apagado.
Será que já vieram cortar?
Mas a TV estava ligada,
E no programa da madrugada,
Dizia uma voz inflada que:
“Com Deus na caminhada
A vida há de melhorar”!


Natália Abreu
(Poema da série “Meu Brasil, brasileiro”)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Essência

Da concepção
O gozo
Do nascimento
O choro
Da infância
A inocência
A euforia
Da adolescência
Da juventude
A atitude
Da maturidade
A identidade
Da velhice
A saudade
Da morte
O sono eterno.

Natália Abreu

O meu esconderijo

Meu esconderijo
Difícil dizer o que é
Seria abrigo?
Encontro do Eu
Comigo?
Para onde me dirijo
Quando meu peito está aflito?
Lugar mais compreensivo,
Ouvinte melhor não há
Posso afirmar!
Decifra meus sussurros
Permite-me chorar
Não me questiona
Permite-me falar
Não me censura
Faz silêncio, lá
Acalmo-me aqui
Sabe dos meus segredos
Promete não revelar
Medo não tenho
Acaso venha agoniar,
Só, não me consente ficar
Eis o meu lugar,
Esconderijo que é
Meu infindo pensar
Sem amarras de amargas regras
Insano não hei de estar
Mas livre...
Sabe-se
Neste insólito lugar:
Palpites sobre política,
Filosofia, religião
De mim, ligeiras fraquezas,
Freqüentes tolices, flébil coração
De ti, eloqüente desejo,
Fecundo beijo, ardente paixão.


Natália Abreu

sábado, 25 de setembro de 2010

Somos de Peixes




Muito temos em comum
Muito temos de diferente.
Somos de peixes.
Somos da imensidão do oceano,
Somos de coração quente,
De emoções musicais,
De envolvimento ativo,
De entrega,
De fantasias latentes.
De sinceridade,
De persistência.
De sensibilidade,
De momento,
Somos de toque,
De cheiro,
De beijo,
De pele,
De arrepios,
E de pensamentos...
Confusos pensamentos.
Somos de peixes.
Talvez por isso
Nadamos em direção ao nada
Mas nadamos em direção à luz.
Quanto mais profundo o mergulho,
Mais escuro.
Vez ou outra
Optamos pela superfície.
Mas não tente nos segurar
Ou vai nos ver escapando pelos dedos.
Somos de liberdade,
De livres impedimentos,
De ausentes limites.
Quase nunca nos apanha o medo.
Resistimos ao frio,
Ao calor,
À correnteza.
Por detrás de nossas escamas
Eis tamanha fortaleza.
Somos de peixes.
Vimos nas coisas simples
As mais valiosas,
O valor além da matéria.
A musicalidade de uma poesia.
A perfeição de uma prosa.
A imaginação num beijo apaixonado.
A essência,
A existência,
Credos dos quais
Por muitos abandonados.
De detalhes, somos.
Amantes, somos.
Realidade e sonhos.
Nossa natureza é essa,
Ainda que esteja poluído
O nosso oceano de solidão.
Alguns pensam que morremos pela boca.
Mal sabem que morremos pelas omissas
Questões do coração.
Somos de peixes.



Natália Abreu

Quem nunca quis ser borboleta?


E dormir uma lagarta e acordar uma borboleta?
Ser admirada de qualquer forma que se apresente...
E ser das mais variadas cores que nenhuma Faber Castel consegue imitar...
Eu já quis ser borboleta...
E bater as asas para um jardim encantado.
Conhecer a beleza das flores,
O cheiro delas.
E voar...
Dormir lagarta e acordar borboleta!
E não ter destino algum.
E voar...
Com a leveza de uma seda,
Com as cores do arco-íres,
Com a magia perfeita da natureza.
E pousar...
Somente quando cansada estiver,
Ou quando de perto quiser sentir uma pétala.
E repousar...
Sob o “calor quentinho” do sol,
Sob o sopro fresquinho do vento,
Sob uma sombra,
Sob as gotas frias da chuva.
E dormir lagarta?
Quem nunca quis ser borboleta?

Natália Abreu

Sobre o presente, passado e futuro




O que é o presente?
Já se foi.

O que é o futuro?
Presente que jaz.

Tudo, passado é.
Passado que a gente mesmo faz.



Natália Abreu

Se eu pudesse...



Se eu pudesse, voltava a ser primata.


Descobriria o fogo.
Fazia abrigo.
Em nome da espécie,
Proteger.


Hoje, homem civilizado


Descobre armas.
Faz-se guerra.
Em nome do dinheiro
E do poder.




Natália Abreu

Rabisco


Sentimento calado
Convertido em letras
Da ponta da caneta
Rabiscos talhados.
Sentimento não dito
Em apuros, aflito
Quer ser há muito,
Falado.
Faz-se solidão, do contrário.
Bruto diamante
A ser lapidado
Liberto
Das linhas de um mudo diário.
Há de extrapolar o papel.
Escrito, tão somente,
É solitário.
As letras não sentem.
Pelejam, em vão,
Imitá-lo.
Quer ganhar vida,
O sentimento
De maneira incondicional.
Quer sair das entrelinhas,
O sentimento
E ser, simplesmente real.


Natália Abreu

Das estações



No inverno,
Que seja quente.
No outono,
Que seja breve.
Na primavera,
Que seja cinza.
No verão,
Que seja neve.



Natália Abreu

O dia





Hoje ele me ama,
Mas eu digo que não.

Ontem pelejei um beijo,
Ele sequer, aperto de mão.

Amanhã,
Pode ser que eu queira.

E se ele disser que não?
Um dia, “o dia” se encontra

Nos desencontros do coração.




Natália Abreu

O mistério da morte


Gosto de pensar na vida.
Pensar na morte me deprime demais!

Penso, enquanto vivo.
Postumamente...

Já não sei mais.




Natália Abreu

Ouro preto



Janela beirando a calçada.

Ruas calçadas de pedras.

Pés calçados de história.

O que vedes

Sobre o solo das minas,

Sob o céu de uns e outros

É o que nasceu

Do sangue crioulo.

“Ouro preto”.

E o que libertou essas almas

Também as aprisionou

Em calabouços.

No fim do dia,

Mais um dia.

Obras erguidas,

Corpos recolhidos,

Almas esquecidas.



Natália Abreu

O universo e eu


Olhei o céu com estranheza

O que sou diante do universo?

Um infinito

Que encanta quem o admira

E assusta

Quem tenta desvendá-lo.

O que sou, meu Deus,

Diante do universo?

Sou cisco,

Sou massa,

Sou átomo.

Sou o que diz a luz,

Sou o sol em mim.

Sou nada no espaço e no tempo.

Que espaço?

Que tempo?

Neste instante

Já não sou mais eu.

Sou futuro que virou passado.

Sou alguma coisa pensante,

Com prazo de validade.



Natália Abreu